Finitude dos recursos naturais e agenda global para a sustentabilidade – O futuro é ancestral

Em conferência realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em junho de 2022, o ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena Krenak, Ailton Krenak fez um breve comentário sobre a expressão “o futuro é ancestral” e explica que utilizou a expressão em resposta a uma pergunta sobre futuro.

Figura 1: O ambientalista, filósofo, poeta e escritor indígena Ailton Krenak

De acordo com o líder indígena, o chamado napa (o branco ou não-indígena, termo criticado por Ailton) pensa que o futuro é um outro lugar – não aqui, nem agora – pontuando ser uma parábola sobre uma coisa que não existe. E, acrescenta:

“Quando você cogita alguma coisa que não pode acontecer aqui e agora, só depois, você está fazendo um jogo, é um bingo: vamos ver se dá. O futuro é: vamos ver se dá pra gente parar de comer a terra? Vamos ver se dá pra gente ser sustentável? Vamos ver se dá pra gente inventar uma outra narrativa sobre nós e o mundo para que a gente continue comendo a terra? (KRENAK em conferência na UFMG, 2022)”

É interessante observar esta forma de compreender o futuro e como ela converge com a perspectiva de tempo proposta pela filosofia africana. De acordo com Luís Tomás Domingos, pesquisador da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), na tradição africana o tempo é visto como a composição dos eventos que ocorreram e que ocorrem no agora. “Os eventos que ainda não ocorreram estão na categoria do ‘Não- tempo’. Neste caso o futuro é praticamente ausente porque os eventos ainda não aconteceram, não se realizaram, portanto, não constituem o tempo” (DOMINGOS, 2011, p. 4), afirma no artigo publicado na Revista Brasileira de História das Religiões.

A discussão do futuro se faz presente quando o tema é a questão da disponibilidade dos recursos naturais e a manutenção do meio ambiente, diante de um cenário ambiental cada vez mais delicado. Este pode ser observado pelo aumento da temperatura média global, frequentes situações de enchentes e seca, em locais que não era habitual, verões com calor intenso, por exemplo. Soma-se a este fato o modelo econômico vivenciado atualmente, baseado no consumismo, sem responsabilidade com o futuro das próximas gerações. Esta é uma discussão que está posta na mesa, principalmente para a juventude.

Apesar da preocupação crescente na atualidade – devido às constantes crises socioeconômicas e ambientais, que ameaçam a vida humana no planeta – essa problemática começou a ser pensada na década de 1960, a qual tem múltiplas origens, dentre elas: a disponibilidade limitada de recursos naturais – frente ao crescimento populacional e ao desenvolvimento industrial – e a preocupação com a preservação ambiental. Dessa forma, nomear e definir o conceito de desenvolvimento sustentável aparece para auxiliar no enfrentamento desta crise, dita ecológica.

Vale ressaltar um outro aspecto importante, que é escapar do discurso da “lavagem verde” (greenwashing), conceito utilizado para caracterizar atitudes em que o discurso ambiental pouco ou nada se reverte em uma ação ambiental efetiva, como, por exemplo, empresas que se utilizam da causa ambiental como forma de propaganda, a fim de atribuírem valores “ecológicos” a seus produtos, sem de fato efetivarem seu compromisso em práticas de sustentabilidade.

Deste modo, a fim de trabalhar a noção de sustentabilidade de uma forma mais ampla, a literatura propõe abordar esta questão por meio de oito dimensões – proposta pelo autor Ignacy Sachs, as quais são:

        a) Social – dignidade;
        b) Cultural – soberania, equilíbrio entre tradição e inovação;
        c) Ecológico – compreender o limite de extração de recursos a serem utilizados aqui;
        d) Ambiental – Respeito à capacidade de autodepuração dos ecossistemas;
        e) Territorial – melhoria urbana e desenvolvimento ambientalmente seguro para áreas ambientalmente frágeis;
        f) Econômica;
        g) Política Nacional e;
        h) Política Internacional.

Nesta direção, várias conferências e reuniões, no âmbito internacional, ocorreram. Em setembro de 2015, em Nova York – sede da Organização das Nações Unidas (ONU) – a Cúpula de Desenvolvimento Sustentável (CDS) reuniu representantes dos 193 Estados-membros da ONU, estes definiram os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); ficando a agenda conhecida como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e composta por 17 objetivos e 169 metas, apresentados para serem adotados nos próximos 15 anos.

No entanto, diante destas ações propostas para o futuro, também fica o questionamento de como o ser humano se vê na relação com o meio ambiente hoje. De modo que esta interação pode ser diferente para pessoas com outras ancestralidades, como, por exemplo, indígenas, africanos, quilombolas.

Por exemplo, para Luís Tomás Domingos, entre as diferenças do modo de viver dos ocidentais, europeus e dos africanos, está a relação com a natureza. Enquanto para o ocidental, de uma maneira geral, o projeto maior da vida é dominar e transformar a natureza e obter o proveito, o capital, o poder econômico a todo custo; para os povos do continente africano as relações se dão no plano de respeito recíproco, na ideia de participação e de complementaridade, visando manter um equilíbrio harmonioso entre o ser humano e o universo.

Esta visão é compartilhada por Bayo Akomolafe, pensador pós-colonial que questiona a visão de mundo ocidental. De acordo com o pensador, no discurso Ocidental há uma distinção clara entre o homem e a natureza, mas na realidade, no mundo dominado pela cultura, ideias, sistemas econômicos e modelos de desenvolvimento do Ocidente, encontra-se numa crise ecológica, discorre em reportagem veiculada pela DW, em 2020, em relação à pandemia enfrentada globalmente de coronavírus.

Akomolafe argumenta que é preciso inverter a lógica que coloca o ser humano, sobretudo os homens brancos, no centro do universo. E aponta que a noção de natureza não é experimentada, por exemplo, pela cultura iorubá – de modo que não havia uma palavra para definir a natureza, pois não veem a distinção entre o ser humano e o que o rodeia. Bayo ainda pontua que a ideia da natureza é uma criação do Iluminismo, que busca separar colocando como se existisse um mundo externo que é “independente de nós, fora de nós”, e estando externo a nós, é passível de extrair e sujeito a abusos, menciona na entrevista realizada.

A fim de observar como a natureza pode ser compreendida por outros povos, temos que, para o povo Krenak, por exemplo, o rio é compreendido como um ancestral. E, é interessante analisar o impacto sentido por este povo diante do desastre ambiental decorrente do rompimento da barragem de rejeitos.

Já para a cultura iorubá, mencionada por Bayo, na origem dos orixás – os quais são cultuados no candomblé – por exemplo, tem-se também esta relação com os recursos naturais, como pontua Reginaldo Prandi:

“Muitos desses espíritos da natureza passaram a ser cultuados como divindades, mais tarde designadas orixás, detentoras do poder de governar aspectos do mundo natural, como o trovão, o raio e a fertilidade da terra, enquanto outros foram cultuados como guardiões de montanhas, cursos d’água, árvores e florestas (PRANDI, p. 1).”

Deste modo, observam-se as diferentes formas de relação com a natureza. E, nesta perspectiva, Bayo questiona o modelo de combate à destruição do meio ambiente que tem sido proposto, buscando monetizar os recursos naturais, tais como os créditos de carbono, que, ao que parece, é decorrente desta lógica de meio ambiente apartado do ser humano.

Diante do exposto, será possível que as estratégias e ações elaboradas buscando a sustentabilidade ambiental abranjam as diversas concepções de relação ser humano/natureza? Qual seria o melhor caminho para lidar com a possibilidade de escassez de recursos naturais? Como você lida com os recursos ambientais? A questão ambiental é uma questão do futuro ou ancestral? Nesse ínterim, diante destas questões – como diria Emicida – é tudo pra ontem.

PARA SABER MAIS

Canal Futura Krenak – Vivos na Natureza Morta | A LAMA MATOU NOSSO RIO. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ng52AN3bmI

Canal Futura Krenak – Vivos na Natureza Morta | A LAMA MATOU NOSSOS BICHOS.Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=DlO2XpJ3IZE

Canal Futura Krenak – Vivos na Natureza Morta | A LAMA MATOU NOSSAS PLANTAS. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=wdx8zqE3WZ4

UFMG – Diálogos pela (re)existência em um mundo comum.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WzsAGSjVCsQ

Conto citado pela indígena Krenak é mencionado na música de Emicida. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=qbQC60p5eZk

Rio on Watch Tv – ‘Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje’: Um mundo antirracista é possível?”. Disponível em: <https://rioonwatch.org.br/?p=57586

Geografia – Mundo oriental e mundo ocidental. Disponível em:https://sme.goiania.go.gov.br/conexaoescola/eaja/geografia-mundo-oriental-e-mundo-ocidental/4

TV Brasil – Entenda como funciona o crédito de carbono. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=2Iy0-iIlVH0

Calculadora de emissão de CO2

Esta ferramenta calcula as emissões de CO2geradas a partir das suas principais atividades cotidianas: transporte, consumo de energia elétrica, gás de cozinha e viagens aéreas. Sugerimos que as informações sejam referentes aos últimos doze meses. Disponível em:https://idesam.org/calculadora/

BARBIERI, J. C.; SILVA, D. Desenvolvimento sustentável e educação ambiental: uma trajetória comum com muitos desafios. Revista de Administração Mackenzie, [S. l.], v. 12, n. 3, p. 51–82, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-69712011000300004&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 20 fev 2023.

DOMINGOS, L. T. A VISÃO AFRICANA EM RELAÇÃO À NATUREZAANPUH, Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em:  https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/luis_tomas_domingos_-_vis%C3%A3o_africana_bantu_da_natureza.pdf. Acesso 25 set 2022.

ESTRATÉGIA ODS. O que são os objetivos de desenvolvimento sustentável. [s.d.]. Disponível em: https://www.estrategiaods.org.br/conheca-os-ods/. Acesso em: 20 fev. 2023.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (IDEC). UM GUIA PARA O CONSUMIDOR NÃO SE DEIXAR ENGANAR PELAS PRÁTICAS DE  GREENWASHING  DAS EMPRESAS. Disponível em: link

JACOBI, P. Meio Ambiente e Sustentabilidade. São Paulo: CEPAM, 1999.

LAMIM-GUEDES, V. Educação para a sustentabilidade: O que é sustentabilidade? Revista EA, [s.l.], v. xx, n. 52, 2018. Disponível em: https://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=2047. Acesso em: 20 fev. 2023.

PAZ, P. (UFPB). Para pesquisador, cultura africana propicia comunhão com a natureza. Ascom/UFPB, 2018. Disponível em: http://www.ufpb.br/antigo/content/para-pesquisador-cultura-africana-propicia-comunh%C3%A3o-com-natureza#:~:text=%E2%80%9CA%20cultura%20africana%20pode%20nos,de%20participa%C3%A7%C3%A3o%20e%20de%20complementaridade. Acesso 25 set 2022.

PEZZODIPANE, R. V. Pós-colonial: a ruptura com a história única. Simbiótica, Ufes, v.ún., n.3, JUN., 2013. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033318/mod_resource/content/1/PEZZODIPANE%2C%20Rosane%20Vieira%20-%20Pos-colonial%20a%20ruptura%20com%20a%20hist%C3%B3ria%20%C3%BAnica.pdf. Acesso 01 out 2022.

PRANDI, R. OS ORIXÁS E A NATUREZA. [s/d]. Disponível em: https://reginaldoprandi.fflch.usp.br/sites/reginaldoprandi.fflch.usp.br/files/inline-files/Os%20orixas%20e%20a%20natureza.pdf. Acesso 08 out 2022.

RIO ON WARCH. ‘Exu Matou um Pássaro Ontem, com uma Pedra que Só Jogou Hoje’: Um Mundo Antirracista É Possível? [PODCAST]. Disponível em: <https://rioonwatch.org.br/?p=57586> . Acesso 01 out 2022.

ROSA-SILVA, P. O.; FERREIRA, L. C. S. Crise socioambiental: perspectiva histórica e crítica da racionalidade moderna e dos meios de produção capitalista. Organizações e Sustentabilidade, [s.l.], v. 5, p. 3–28, 2017. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ros/article/view/29991/21739. Acesso em: 20 fev. 2023.

RUSSEL, R. Bayo Akomolafe: “Querer controlar a natureza é uma ilusão”. Deutsche Welle (DW), 10 jul 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/bayo-akomolafe-querer-controlar-a-natureza-%C3%A9-uma-ilus%C3%A3o/a-54129933. Acesso 24 set 2022.

UFMG. Pensar o futuro é urgente, defendem Davi Kopenawa e Ailton Krenak. UFMG, 27 jun 2022. Disponível em: < https://ufmg.br/comunicacao/noticias/davi-kopenawa-e-ailton-krenak-defendem-urgencia-de-pensar-o-futuro-agora-em-conferencia-no-auditorio-da-reitoria>. Acesso 11 set 2022.