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Policultura
Policultura de saberes: Indígenas, quilombolas e a biodiversidade
No texto formativo “Monocultura de Saberes” discutimos como o agronegócio se legitimou no mundo como uma autoridade no campo da produção agrícola, a partir de uma ideia questionável de que faria aumentar a produtividade agrária para “alimentar o mundo”. Entretanto, ao mesmo tempo, provoca diversos distúrbios sociais, econômicos e ecológicos que vão na contramão da sustentabilidade, do uso correto dos recursos naturais e da distribuição de alimentos.
É interessante observar como o modelo agrícola imposto pelos colonizadores e posteriormente na chamada Revolução Verde pode ser interpretado como uma monocultura dos saberes, em que não há respeito e apropriação dos conhecimentos dos diversos povos de maneira estratégica para o Brasil (PERCURSOS ALTERNATIVOS, 2022, online).
Desse modo, visto que vivemos atualmente diversas crises, sobretudo da mudança climática, o modelo do agronegócio se mostra insuficiente para as atuais demandas da humanidade e perdeu sua autoridade universal.
Ela está sendo contestada em favor de uma pluralidade de conhecimentos oriundos das comunidades tradicionais, que são populações herdeiras de uma história de resistência à colonização. Estas não oferecem simplesmente soluções “técnicas” para resolver os problemas do mundo Ocidental, mas vislumbram outros modos de entender a relação entre Natureza e Cultura e são expressões da sistematização do conhecimento empírico das comunidades tradicionais sobre a realidade que os rodeiam.
Modelo Agronegócio

Figura 1: Problemas relacionados à produção do modelo do agronegócio
Fonte: Elaborado por Iberê Araujo da Conceição para a Percursos Alternativos (2023).
Neste sentido, há a necessidade de resgatar, proteger e valorizar outras formas de produção que estejam alinhadas com os desafios contemporâneos e para a agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecida pelos membros da Organização das Nações Unidas (ONU) até 2030, assim como para a perspectiva global do multiculturalismo.
A agroecologia pode ser definida como uma disciplina científica, prática agricultural e um movimento social ou político (WEZEL et al., 2009), que, segundo Miguel Altieri (2004), tem como princípios:
- uma abordagem que integre os princípios agronômicos, ecológicos e socioeconômicos;
- incentivo ao desenvolvimento de agrossistemas com baixa dependência de insumos externos;
- criação de sistemas agrícolas complexos, produzindo fertilidade no solo, produtividade e proteção das culturas por meio das interações ecológicas, e não apesar delas, como no modelo do agronegócio.
O ciclo da roça – patrimônio cultural brasileiro
A gente roça, depois derruba, faz a queima, depois faz o plantio. E aí, num determinado ponto, a gente abandona esse local para entrar em descanso, se regenerar, e a gente faz a roça em outro local. Esse é um sistema rotativo, esse é o manejo quilombola (MONGABAY, 2022. Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2022/09/rocas-quilombolas-do-vale-do-ribeira-conciliam-producao-e-conservacao/).
Os quilombolas do Vale do Ribeira trabalham no tipo de roça conhecida como coivara, capoava, pousio ou roça-de-toco, sistema de cultivo milenar da maioria das populações indígenas, que foram assimiladas pelas comunidades remanescentes do processo de colonização (ADAMS, 2000; OLIVEIRA, 2002 apud SIMINSKI, 2007). Este modelo é descrito também em outras zonas de florestas tropicais e subtropicais em outras partes do mundo, demonstrando uma eficiência empírica.
Coivara em tupi significa “resto ou pilha de galhos”, que mobiliza atividades que estamos acostumados hoje a combater, como a queima e a derrubada de árvores. No entanto, o uso desse recurso é extremamente importante e incorporado aos ciclos naturais da floresta, pois seu uso é controlado e restrito ao período que antecede o plantio da roça. Basicamente consiste em abrir uma clareira em formato circular e tamanho reduzido (máximo 1 hectare) de uma porção preservada da floresta, iniciando pela derrubada das menores e posteriormente as de maior porte, e permanecerão descansando por um período de secagem de cerca de 20 dias a depender do clima. Este trabalho inicial de limpeza do espaço é encarregado aos homens.
As raízes dessas árvores e plantas irão apodrecer e se tornarão matéria orgânica disponível, ao passo que a queima do terreiro irá transformar todo aquele material da derrubada em cinzas, que com a chuva irão fertilizar a terra. Além disso, ao abrir uma clareira na floresta você altera as condições do local, aumenta a incidência solar, permite que as sementes que estavam no solo se desenvolvam e que a roça tenha uma proteção física contra os ventos e pragas.
É interessante observar que nesse sistema as derrubadas de árvores e a queima são utilizadas em benefício dos agricultores e da própria floresta, pois seu ciclo natural é respeitado. Não se pode confundir com as práticas de desmatamento e queimadas em larga escala, sem um manejo que busque manter as propriedades naturais do solo no longo prazo e desprovido de uma preocupação com a manutenção da flora e fauna silvestre.
Na verdade, as queimadas e derrubadas de árvores que devemos combater são aquelas que buscam substituir grandes porções de mata nativa por cultivos monoculturais e pastagens para gados, sendo essas práticas umas das maiores emissoras de gases de efeito estufa. Ademais, o desmatamento e queimadas sem controle são a principal forma de expansão das fronteiras agrícolas do agronegócio sobre áreas de preservação ambiental, muitas vezes invadindo terras indígenas e comunidades tradicionais.

Figura 2: Esquema de uma roça com as diversas manivas, os troncos queimados, o centro da roça em lilás, as bananeiras e outros cultivos.
O SAT também conta com a prática de consorciação de culturas e rotação de culturas, criando sinergia entre plantas que usufruem de copas em diferentes alturas, raízes em profundidades diferentes e necessidades que se complementam. Para dar um exemplo dessa inteligência agrodinâmica, Elizângela da Silva Costa do povo baré comenta que “o povo branco irriga aquilo lá, irrigação chama né. Nós não, a irrigação é esse aqui, os abacaxis, por isso toda roça tem abacaxi porque ele é vaso de água pra eles consumirem, seja no inverno ou no verão” (NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mOV6JXqY5r4&ab_channel=NationalGeographicBrasil).
Desse modo, além do cultivo de mandioca e suas variedades, na roça também havia cará, batata-doce, tajá, jerimum, melancia, cana-de-açúcar, abacaxi, milho, arroz, fava, amendoim, tabaco, pimenta, algodão, banana, urucum, mamão. Ao redor das casas costuma-se plantar árvores frutíferas. A seleção das sementes, cuidado da roça e escolha das plantações, ou seja, as mulheres indígenas são protagonistas nessa atividade fundamental da comunidade.
Após um período de dois a oito anos de uso da roça, a depender da região, esse espaço entrará em um período de pousio, que é um período de descanso que dura em torno de 10 a 20 anos. Neste modo de pensar o mundo, de medir a passagem do tempo e experienciar os ciclos culturais e biológicos, o período de recuperação do solo e da floresta é considerado rápido pelos produtores (SIMINSKII; FANTINI, 2007).
Em contraste, no modelo do agronegócio o solo é utilizado até o seu esgotamento completo. Neste caso, o solo pobre tem poucas condições de se regenerar naturalmente, aumentando os processos de erosão, assoreamento dos rios e logo o empresário busca outro solo fértil que possa ser utilizado novamente sem qualquer responsabilidade com a sustentabilidade produtiva e ecológica.
Você Sabia?
A planta Manihot esculenta, da família das euforbiáceas, mais conhecida como mandioca, macaxeira, aipim, castelinha, uaipi, mandioca-mansa, maniva, maniveira, pão-de-pobre, mandioca-doce, mandioca-brava e mandioca-amarga, entre outros, constitui a base da agricultura e alimentação da maioria dos povos indígenas, quilombolas e comunidades rurais no Brasil. Na Região do Rio Negro, ela é conhecida como maniva e possui, até o momento, em torno de cem variedades de mandioca diferentes e todas elas carregam uma porcentagem elevada da substância tóxica cianeto.
A mandioca possui em toda a sua composição (raízes, caule e folhas) um glicosídeo chamado linamarina, que une uma molécula de glicose (carboidrato) e uma molécula de cianidrina, composto que contém o cianeto, substância tóxica. É durante o processamento da mandioca, seja no corte, esmagamento ou trituração, que são produzidas reações químicas, liberando a enzima linamarase, responsável por quebrar a ligação da linamarina, portanto, liberando a glicose e o cianeto (EMBRAPA, 2018).

Figura 3: Mulher indígena preparando a tapioca ou beiju
Os povos indígenas aprenderam ao longo das gerações a consumir este alimento com segurança. O cianeto é um composto bastante volátil, evaporando naturalmente em torno dos 30º celsius e podendo ser acelerado pelo processo de cozimento. É interessante notar aqui que, embora hoje tenhamos todo um acúmulo de conhecimento sobre química orgânica que nos permite descrever e explicar como esse processo acontece, os povos indígenas já possuíam esse conhecimento há milênios e foi a partir disso que pratos populares como tapioca (beiju), farinha de tapioca, tucupi, entre outros, foram se desenvolvendo ao longo da história e forneceram alimentos seguros para a população.
Vimos como os Sistemas Agrícola Tradicionais (SAT) possuem técnicas, sistemas e conhecimentos que são exemplos de produção sustentável e que podem ser utilizados como referência para outros modelos de produção. Entretanto, é importante apontar desde já que o grau de demanda por bens de consumo dos centros urbanos e as condições geográficas são limitantes para uma simples cópia de outros modos de produção, mas que ainda assim diversos destes conhecimentos podem (e alguns já estão) ser incorporados de uma forma mais geral na agricultura brasileira. Por exemplo, a diminuição do uso de fertilizantes exteriores e maior reaproveitamento da matéria orgânica, conhecido como adubação verde.
Existem muitos mais detalhes e dinâmicas interessantes e ricas do ponto de vista científico, mas também do ponto de vista cultural e religioso, que não conseguiremos aprofundar neste texto. Para os principais exemplos que trouxemos neste texto, recomendamos os seguintes materiais para quem gostaria de aprofundar no assunto:
– Documentário de Instituto Socioambiental sobre o Sistema Agrícola Quilombola do Vale do Ribeira, produzido em um diálogo entre quilombolas e pesquisadores que compreendeu as seguintes dimensões: ciclo anual da roça; sustentabilidade na Mata Atlântica; saberes, celebrações e práticas culturais, promoção da agrobiodiversidade e do patrimônio genética da humanidade (24min36s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0B0ydEoqJ8E&ab_channel=InstitutoSocioambiental
– Documentário da National Geographic Brasil sobre o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. Neste curto documentário, são levantados práticas e saberes utilizados por 23 povos indígenas da região amazonense. (9min40s) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mOV6JXqY5r4&ab_channel=NationalGeographicBrasil
– Documentário Sementes Quilombolas: soberania alimentar e preservação da floresta no Vale do Ribeira, SP (5min02s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JY5jYhiMdso&ab_channel=MongabayBrasil
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