A CIÊNCIA AFRICANA

Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões éticas e responsáveis.

(EM13CNT201) Analisar e discutir modelos, teorias e leis propostos em diferentes épocas e culturas para comparar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução da Vida, da Terra e do Universo com as teorias científicas aceitas atualmente.

(EM13CNT207) Identificar, analisar e discutir vulnerabilidades vinculadas às vivências
e aos desafios contemporâneos aos quais as juventudes estão expostas, considerando
os aspectos físico, psicoemocional e social, a fim de desenvolver e divulgar ações de
prevenção e de promoção da saúde e do bem-estar.

A ciência africana

Historicamente houve, e ainda há, uma desvalorização dos africanos e de seus descendentes enquanto produtores de conhecimentos científicos. A África está sujeita a um regime representacional, isto é, a um repertório de imagens cujos sentidos são de um lugar selvagem e primitivo, de onde não brotou nenhum tipo de conhecimento sofisticado capaz de interessar ao conjunto da humanidade.

Por séculos foi lançada, a partir da Europa, uma gama de olhares sobre os africanos cujo resultado foi desqualificá-los enquanto povos humanos e pensantes. Enquanto isso, a Europa moderna construiu sobre si um regime representacional de complexo civilizatório superior a qualquer outro que já tenha existido.

A partir dessa introdução histórica, torna-se importante problematizar os processos de desqualificação do continente africano, enquanto território intelectualmente fértil, e o apagamento da história científica africana ao longo dos séculos.

Primeiro, é fundamental compreender que para implementar uma supremacia civilizacional e intelectual ao longo dos séculos, os europeus promoveram um processo de descrédito de qualquer outra civilização do mundo. Nesse contexto, a África passou por episódios de exploração, roubo, saqueamento, escravidão, colonização e extermínio de seus povos nativos que, consequentemente, levaram a sua história a ser contada de forma exógena, isto é, por aqueles que eram estranhos e externos ao continente e ser silenciada, apagada, distorcida. Esse processo caracteriza aquilo que Santos (1998) chama de epistemicídio, isto é, o processo político-cultural através do qual se mata ou destrói o conhecimento produzido por grupos sociais subalternizados, como forma de manter e aprofundar sua subordinação. O epistemicídio, ao longo da história ocorreu contra trabalhadores, indígenas, negros, mulheres e contra minorias em geral. Segundo Santos “[…] Para além do sofrimento e da devastação indizíveis que produziu nos povos, nos grupos e nas práticas sociais que foram por ele alvejados, [o epistemicídio] significou um empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades de conhecimento.” (2018, p. 200).

Portanto, o continente africano foi inventado pelo imaginário ocidental como o local do primitivismo e da selvageria onde nunca floresceu nenhum tipo de civilização. Dentro dessa representação discursiva, os africanos não teriam capacidade cognitivo-intelectual de produzir conhecimento científico, o que confirmaria a sua inferioridade.

Segundo, é preciso observar que em contraposição à representação negativa formulada da África, a Europa produziu sua autoimagem como sinônimo de complexo civilizacional superior, o único capaz de criar conhecimento científico. Dessa maneira, a ciência foi narrada como uma capacidade exclusiva dos povos europeus, sendo ocultado que eles roubaram e saquearam o patrimônio africano, bem como silenciaram e apagaram a ciência africana.

A perda irreversível que o epistemicídio provocou é difícil de ser mensurada, pois a destruição de grandes centros de ciência e tecnologia, como a biblioteca de Alexandria, pode, em um instante, desaparecer com séculos de conhecimentos e habilidades técnicas. Com o passar do tempo, esses conhecimentos e essas tecnologias podem parecer fantasiosos e irreais (SERTIMA, 1983).

No entanto, há evidências suficientes para afirmarmos que os primórdios do conhecimento e da prática científica podem ser encontrados no continente africano, desde o surgimento da matemática até as bases de uma filosofia ocidental, passando pelo surgimento da escrita, da agricultura e as grandes contribuições na medicina e astronomia. De forma geral, a cultura e ciência egípcia, uma civilização africana, foram as primeiras pedras fundamentais da civilização ocidental.

Figura 1: As pirâmides de Gizé, construídas há cerca de 4.500 anos no Egito, são uma evidência dos conhecimentos em matemática, geometria e arquitetura dos antigos egípcios, uma civilização africana.

Figura 2: Agricultor egípcio. A obra data de 1200 antes da era corrente. Os africanos foram pioneiros no desenvolvimento da agricultura e da pecuária.

Apresentamos aqui algumas breves evidências do pioneirismo africano no desenvolvimento de diferentes áreas da ciência desde a Antiguidade, sendo fundamental para o desenvolvimento da ciência ocidental.

No âmbito da matemática, uma das primeiras evidências do uso de números e de contagem data de 8.000 anos, remontando a região da atual República Democrática do Congo.

Figura 3: Observe a localização da República Democrática do Congo no continente africano.

Objetos

Na física e na química, os africanos também se destacam ao longo da história como pioneiros e desenvolvedores de várias tecnologias. Um exemplo disso é a produção de aço feita há 2.000 anos no continente. O povo Haya, localizado na atual Tanzânia, foi especialista na fundição de metais, chegando a produzir aço dentro de fornos artesanais que atingiam temperaturas altíssimas, feito que só foi alcançado pelas técnicas europeias de fundição na Modernidade.

Figura 4: Observe a localização da Tanzânia no continente africano

A tecnologia para a produção de aço só aparece na Europa a partir do século XIX. Essa tecnologia industrial africana não estava restrita ao povo Haya. Segundo Sertima (1983), havia uma distribuição generalizada de sítios industriais no início da Idade do Ferro em áreas próximas à Tanzânia. A natureza dessa indústria também indica que esses africanos viviam em centros com grande densidade populacional, com uma força de trabalho organizada e cooperativa.

A astronomia antiga africana é bastante conhecida pelo desenvolvimento de calendários precisos e observatórios astronômicos, sobretudo no Antigo Egito. No entanto, em outros locais da África também houve grandes avanços na observação espacial. No Quênia, por exemplo, há registros de dois observatórios astronômicos, o Namoratunga I e o Namoratunga II, que datam de cerca de 300 anos antes da era corrente. Tais observatórios proporcionaram a elaboração do que é conhecido como o calendário mais exato e complexo do período histórico pré-cristão (LYNCH; ROBBINS, 1983). Além disso, a astronomia ancestral Dogon mostrou-se extremamente avançada, revelando um conhecimento astronômico que os europeus desenvolveram apenas muito séculos depois. No plano de aula “Eram os africanos astronautas”, você pode ler mais sobre a astronomia Dogon.

Figura 5: Observe a localização do Quênia no continente africano

A medicina africana também foi bastante desenvolvida durante a Antiguidade e Idade Média. Os africanos ainda hoje possuem, por exemplo, um grande conhecimento em botânica, constituindo uma importante forma de medicina herbal. Na medicina tradicional africana, há uma ampla gama de plantas utilizadas para uma variedade de finalidades como aborto, malária, reumatismo, venenos neuro-tóxicos, parasitas intestinais, bronquite, conjuntivite etc. Esses tratamentos são tão efetivos quanto aqueles usados na medicina ocidental, que, diga-se de passagem, tem se valido de uma série de plantas africanas (SERTIMA, 1983). A medicina tradicional africana não guarda apenas um grande conhecimento em plantas, mas também em psicoterapia, diagnóstico de doenças, conhecimentos sobre anestesia, assepsia, vacinação, anatomia, fisiologia, técnicas cirúrgicas avançadas etc.

A medicina egípcia, bastante conhecida, foi uma das responsáveis pelos primeiros desenvolvimentos da ciência médica no mundo. Os antigos egípcios foram responsáveis por produzir os primeiros médicos, os primeiros conhecimentos e a primeira literatura médica, contribuindo para o desenvolvimento da medicina na Grécia Antiga. Frequentemente, o egípcio Imhotep, que viveu por volta de 3.000 anos antes da era corrente, é apontado como um dos primeiros médicos do mundo. Além de médico, ele também era arquiteto, escriba, sacerdote e administrador. As evidências científicas obtidas a partir dos papiros Ebers e Edwin Smith mostram que os antigos egípcios possuíam conhecimentos em doenças intestinais, helmitoses[1], oftalmologia, dermatologia, ginecologia, obstetrícia, contracepção, odontologia, tumores, fraturas, queimaduras e anatomia (NEWSOME, 1983).

Esses são alguns dos conhecimentos africanos que mostram como o continente foi um local fundamental para o desenvolvimento científico mundial. A matemática, a filosofia, a ciência e a cultura africanas foram cruciais para a civilização ocidental. Assim, trazer à tona essas contribuições é parte importante de um processo de justiça histórica e epistêmica, que contribui para a construção de novas representações sobre o africano e o negro em geral.

Vale ressaltar que o tráfico transatlântico e a colonização provocaram uma devastação no continente africano, afetando as sociedades em todos os âmbitos possíveis, dentre eles, a ciência africana. Conforme apontam Mazrui e colaboradores (2010), a maior contribuição africana para a ciência e tecnologia durante o período colonial, e para além dele, operou-se através da mão de obra e dos recursos oferecidos às fábricas e laboratórios do mundo. Contribuíram para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia ocidentais os recursos e o trabalho dos africanos e asiáticos que estavam sob domínio dos europeus. O povo africano financiou, entre muitos outros povos, a ciência e a técnica ocidentais durante mais de seiscentos anos, nesse contexto “[…] os africanos subvencionaram a ciência ocidental.” (MAZRUI et. al., p. 785).

É fundamental que você professor(a) entenda esse processo histórico de produção de conhecimento científico e compreenda: (a) a importância da ciência africana para o desenvolvimento da ciência mundial; (b) como a exploração europeia do continente africano também subvencionou o desenvolvimento científico europeu; (c) como os africanos suportaram o fardo do avanço da ciência europeia. A partir disso, podemos entender a ciência ocidental por meio de uma outra perspectiva, que coloca no centro as questões raciais que regem a lógica das relações sociais desde a Modernidade.

 

[1] Doenças causadas por animais popularmente conhecidos como “vermes”, ou na literatura científica “helmintos”. Os helmintos incluem os filos dos Nematelmintos e dos Platelmintos. São exemplos de representantes desses grupos, a lombriga (Ascaris lumbricoides) e a tênia (Taenia saginata Taenia solium), respectivamente.

Para saber mais:

– Sobre a ciência africana:

MAZRUI, Ali A.; AJAYI, J. F. Ade; BOAHEN, A. Adu; TSHIBANGU, Tshishiku. Tendências da filosofia e da ciência na África. In: MAZRUI, Ali A.; WONDJI, Chistophe (ed.). História Geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: Unesco, 2010. p. 761-815.

SERTIMA, Ivan van (ed.). Blacks in Science: ancient and modern. New Burnswick; London: Transaction Publishers, 1983.

– Sobre o Ifá

MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. O Ifá: uma tradição oral. 2017. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/o-ifa-uma-tradicao-oral/. Acesso em: 08 nov. 2022.

QUAL a diferença do Opelé Ifá e do Jogo de Búzios? – EP#128. S.I.: Historiando Axé Com Tom Oloorê, 2022. (3 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3gAY2jAx7mk. Acesso em: 08 nov. 2022.

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O outro alienígena

DELFINO, Jair; CUNHA JÚNIOR, Henrique Antunes; SILVA, Samira Paula dos Santos; MEDEIROS, Jarles Lopes de. IFÁ um sistema binário de divinação. Anais do IV Seminário de Educação Matemática nos Contextos da Educação no Campo, Caruaru, p. 93-97, dez. 2015. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/44272/1/2015_eve_jdelfino.pdf. Acesso em: 11 jan. 2023.

LYNCH, B. M.; ROBBINS, L. H. Namoratunga: the first archaeoastronomical evidence in sub-saharan African. In: VAN SERTIMA, Ivan (ed.). Blacks in Science: ancient and modern. New Burnswick; London: Transaction Publishers, 1983. p. 51-56.

MAZRUI, Ali A.; AJAYI, J. F. Ade; BOAHEN, A. Adu; TSHIBANGU, Tshishiku. Tendências da filosofia e da ciência na África. In: MAZRUI, Ali A.; WONDJI, Chistophe (ed.). História Geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: Unesco, 2010. p. 761-815.

MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. O Ifá: uma tradição oral. 2017. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/o-ifa-uma-tradicao-oral/. Acesso em: 08 nov. 2022.

MOUTINHO, Marcelo. O axé do Ifá. 2020. Disponível em: http://revistacaju.com.br/2020/08/03/o-axe-do-ifa/. Acesso em: 08 nov. 2022.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Introdução às antigas civilizações africanas. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008c. p. 55-72.

NEWSOME, Frederick. Black contributions to the early history of western medicine. In: VAN SERTIMA, Ivan (ed.). Blacks in Science: ancient and modern. New Burnswick; London: Transaction Publishers, 1983. p. 125-139.

OLOORÊ, Tom. Qual a diferença do Opelé Ifá e do Jogo de Búzios? – EP#128. YouTube, 14 de abril de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3gAY2jAx7mk. Acesso em: 08 nov. 2022.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O Norte, o Sul e a utopia. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as Epistemologias do Sul: antologia essencial. Buenos Aires: Clacso, 2018. p. 145-222. Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas.

SANTOS, Boaventura de Souza. La Globalización del Derecho: los nuevos caminos de la regulación y la emancipación. Bogotá: Ilsa, Universidad Nacional de Colombia, 1998.

SERTIMA, Ivan. The lost sciente of Africa: no overview. In: VAN SERTIMA, Ivan (ed.). Blacks in Science: ancient and modern. New Burnswick; London: Transaction Publishers, 1983. p. 7-26.